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Conflito entre o mundo da Luz e o mundo das trevas
Livro: O TEMPLO – Resgate do sentido original da doutrina de Jesus
http://tribodossantos.com.br/pdf/O%20Templo%20-%20introdu%C3%A7%C3%A3o.pdf
“Ideologia” como “verdade” e efeito de realidade produzida pelo poder (Foucault) (Art. 32, 7.1.;7.2., p. 186-196) .
No sentido do resgate do sentido original do pensamento do Filho do Homem, Foucault nos ajuda a entender, atualizar a terminologia e a ampliar alguns aspectos de determinadas noções abordadas pelo Mestre. Foucault focaliza a noção de ideologia, por um prisma que, por um aspecto, se aproxima das noções de “definição da situação” e da “profecia que se cumpre por si mesma” (Merton), no que tange a ideologia produzir efeitos de realidade no indivíduo que a assimila. Mas, por outro aspecto, Foucault amplia esse quadro. Ele focaliza a noção de “ideologia”, enfatizando e esclarecendo o efeito de realidade que ela induz e produz na conduta dos indivíduos, enfim, no mundo real existente. Efeito este que assume, assim, o status de “verdade”, e que é produzido e apoiado, em cada sociedade, pelo poder, o qual atua em forma de teia. Nestes termos, Foucault emprega a noção de “verdade”, no sentido de “realidade”. Considerar o discurso “ideológico”, “hegemônico”, “oficial”, etc. como invertido, errado, ilusório, próprio de consciência alienada e não científico, na verdade consiste em reduções. Pois, o primordial é que o discurso produzido pelo poder em teia, induz e produz efeito de realidade com status de verdade, no mundo real existente. A qual mesmo sendo falsa ou simplesmente inventada, pode produzir efeitos de realidade, na conduta de quem a assimila. Vejamos Foucault:[1]
“É preciso pensar os problemas dos intelectuais não em termos de ‘ciência/ideologia’, mas em termos de ‘verdade/poder’ (…) Por ‘verdade’, entender um conjunto de procedimentos regulados para a produção, a lei, a repartição, a circulação e o funcionamento dos enunciados. A verdade está circularmente ligada a sistemas de poder, que a produzem e apoiam, e a efeitos de poder que ela induz e que a reproduz. ‘Regime’ da verdade. Regime este que não é simplesmente ideológico ou superestrutural (…) Em suma, a questão política não é erro, a ilusão, a consciência alienada ou ideologia; é a própria verdade” (…) O importante, creio, é que a verdade não existe fora do poder ou sem poder (…) A verdade é deste mundo; ela é produzida nele graças a múltiplas coerções e nele produz efeitos regulamentados de poder. Cada sociedade tem seu regime de verdade, sua política de verdade: isto é, os tipos de discurso que ela escolhe e faz funcionar como verdadeiros; os mecanismos e as instâncias que permitem distinguir os enunciados verdadeiros dos falsos, a maneira como se sanciona uns e outros; as técnicas e os procedimentos que são valorizados para a obtenção da verdade; o estatuto daqueles que têm o poder de dizer o que funciona como verdadeiro (os grifos em negrito são nossos)”.
Foucault desenvolveu a noção de mundo, onde a verdade estabelecida é aquela induzida, produzida e reproduzida pelo poder. Esta noção de mundo colabora e amplia algumas noções que focalizamos anteriormente: “mundo ou província das trevas exteriores”; “mundo da pseudoconcreticidade”. Todas essas noções ou no que elas se completam, estão, por um aspecto, em oposição à noção de “mundo ou província da Luz ou do reino dos céus”.
7.2. A oposição entre o “mundo da luz” (reino do céu) e o mundo das trevas.
O Mestre ressaltou a oposição acima indicada.
Por um lado, o Mestre afirmou ser ele “a luz do mundo”. Ou seja, ele se mostrou como um exemplo ou amostra viva, embora não hegemônica, do “caminho”, détour ou método analítico. O qual abre várias possibilidades ao indivíduo: possibilidade de se assenhorear do reino dos céus, isto é, do verdadeiro conhecimento da realidade; possibilidade de desenvolver a “luz” (conhecimento verdadeiro acerca da realidade) da “vida”, isto é, concernente ao autoconhecimento, à capacidade de autodiligência e a consciência social crítica e transformadora, no mundo social que lhe seja imediato. A noção de “luz do mundo” pode ser pensada, enquanto um determinado “mundo”, “subuniverso” ou província finita de significados” (Schutz), como “mundo da luz”, que no caso isolado protagonizado por Jesus, consistia no mundo não hegemônico, ou seja, patológico.
Por outro lado, o Mestre mostrou aqueles que não seguiam o seu exemplo, como sendo os que andavam no “mundo das trevas”, os quais constituíam a maioria quase absoluta no “mundo”, sentido lato deste termo. Mundo das trevas esse que corresponde, por um aspecto, ao mundo focalizado por Foucault. Onde a noção de “verdade” no sentido de realidade vigente, é aquela induzida, produzida e reproduzida pelos que detêm o poder em rede (no caso, os sacerdotes e escriba saduceus e fariseus, os “anciãos do povo” e os dominadores romanos, e respectivos agentes subalternos). Verdade esta expressa nas condutas dos indivíduos que a assimilam. O referido “mundo das trevas” pode ser pensado, ainda, como o “mundo da pseudoconcreticidade” (Kosik). Nesses sentidos, vejamos o Mestre debatendo com alguns dos ideólogos hegemônicos (fariseus) de sua nação:
“Falou-lhes outra vez Jesus: ‘Eu sou a luz do mundo; aquele que me segue não andará em trevas, mas terá a luz da vida”. (Jo 8, 12).
Na sequencia do embate de ideias acima apontado, os ideólogos hegemônicos presentes (sacerdotes fariseus) contestaram o Mestre, visando desacreditá-lo diante do público. Eles argumentaram que o testemunho dado por Jesus não era digno de crédito. Pois, este testemunhava em favor próprio, arvorando-se a luz do mundo. Ou seja, a fonte de conhecimento que esclarece a verdadeira realidade deste mundo, para aqueles que o seguem, e que, assim, desenvolverão “a luz da vida” (autoconhecimento, capacidade de autodiligência e consciência social crítica e transformadora). Além disso, o Mestre mostrava e combatia “o mundo das trevas exteriores” (a verdade que é deste mundo, e que é produzida nele graças a múltiplas coerções e nele produz efeitos regulamentados de poder; a pseudoconcreticidade), nas quais caminhavam aqueles que não o seguiam.
O Mestre replicou contra os ideólogos hegemônicos, argumentando saber donde ele vinha, em dois sentidos:
Em primeiro lugar, ele veio pelo caminho, détour ou método analítico que havia percorrido. O qual tem como ponto de partida, operações abstratas no processo do pensamento. Ou seja, operando a partir do seu campo subjetivo da conduta, sobre os seus fatores subjetivos, identificando os fatores determinantes básicos (os sentimentos) e suas conexões, e eliminando, primeiramente, o sentimento de cobiça, estimular sentimentos de ordem amorosa, etc. Desse modo, operando, autônoma e conscientemente, no campo objetivo, pois o corpo subjetivo motiva o campo objetivo. Enfim, operando, assim, no “seu corpo todo” ou conjunto complexo de conduta, ele desenvolveu “vida”, isto é, autoconhecimento, capacidade de autodiligência e consciência social crítica e transformadora.
Em segundo lugar e por este viés, o Filho do Homem entendeu o significado do seu papel social, tanto no contexto sócio-histórico em que estava inserido como na sócio-história transcorrida, preteritamente, em tempo muito longo. Neste sentido, “ele” (o “retorno do Reprimido” – Marcuse) revelou, através de João, as duas últimas vezes anteriores e os respectivos lugares, em que havia emergido na sócio-história: primeiro no Antigo Egito (VI Dinastia), depois, em Sodoma (final do Médio Império): “seus cadáveres ficarão expostos na praça da Grande Cidade que se chama simbolicamente Sodoma e Egito, onde também o Senhor delas foi crucificado”. (Ap 11, 8).
O Mestre acrescentou que o caminho, détour ou método analítico acima indicado, e que ele percorrera, abrira, também, a possibilidade de saber para onde ia, em dois sentidos.
Em primeiro lugar, abrira a possibilidade de conhecer e vivenciar objetivamente a verdadeira realidade de si mesmo e da sociedade em que vivia, ou seja, adentrar no reino dos céus, ou em outros termos, exercer a práxis verdadeiramente revolucionária, porque radicalmente pacifista. Intervindo, assim, na realidade sócio-histórica, que lhe era contemporânea. E, assim, intervindo, também, no devir histórico, preparando o seu retorno, que ocorreria em tempo muito longo (e que agora está próximo) (cf. Mt 24, 3s). Em segundo lugar, abrira a possibilidade de identificar o corpo subjetivo ou “céu” (seus respectivos fatores e o modo como o indivíduo se conduz a partir deste campo, em relação a si mesmo e com outros indivíduos com os quais se relacionara no campo objetivo), em se tratando da parte do “corpo todo” “onde não os consomem nem as traças nem a ferrugem, e os ladrões nem furam nem roubam”. Ou seja, abrira a possibilidade de identificar o campo, corpo subjetivo ou céus, em se tratando da parte do “corpo todo” que subsiste, após a morte do corpo orgânico, na dimensão subjetiva, que extrapola os limites do campo físico. Dimensão subjetiva esta que por falta de nomenclatura apropriada pode ser pensada “meta subjetiva”, “metafísica” ou “espiritual”. Para onde o Mestre sabia que estava na iminência de ir, ou melhor, regressar. Pois, ele sabia que os ideólogos não tardariam em conseguir provocar a norte do seu corpo físico.
O Mestre se dirigiu aos ideólogos e acrescentou, ainda: “vós não sabeis donde venho nem para onde vou”. Ou seja, ele estava afirmando para os ideólogos, que estes não conheciam o caminho, détour ou método analítico, que Jesus houvera percorrido (donde venho). Eles não conheciam, também, as duas possibilidades que o tal caminho abre (para onde vou), conforme já esclarecemos acima. Vamos ao trecho em tela:
“A isso, os fariseus lhe disseram: ‘Tu dás testemunho de ti mesmo; teu testemunho não é digno de fé.’ Respondeu-lhes Jesus: ‘Embora eu dê testemunho de mim mesmo, o meu testemunho é digno de fé, porque sei donde vim e para onde vou; mas vós não sabeis donde venho nem para onde vou”. (Jo 8, 13-14).
O Mestre abordara, no embate de ideias contra os fariseus, o tema da “ida” do seu corpo subjetivo para a dimensão meta subjetiva ou “metafísica” (morte do corpo físico), porque sabia que sobre este embate, pairava a iminência da morte do seu corpo orgânico. Pois, os ideólogos hegemônicos “judeus procuravam tirar-lhe a vida” (Jo 7, 1-b; cf. Jo 7, 25-b), e “os príncipes dos sacerdotes enviara guardas para prendê-lo” (Jo 7, 32-b), “Mas ninguém o prendeu porque ainda não era chegada a sua hora” (Jo 8, 20-b), “Quando tiverdes levantado o Filho do Homem, então conhecereis quem sou e que nada faço de mim mesmo, mas falo do modo como o Pai me ensinou” (Jo 8, 28).
O Mestre acrescentou, ainda, que os ideólogos (fariseus) não conheciam o caminho, détour ou método analítico, o qual abre a possibilidade do indivíduo conhecer, verdadeiramente, a realidade. Ao contrário, os ideólogos e os indivíduos em geral julgavam conhecer a realidade, mas a conheciam de modo próprio do caminho restrito, isto é, conhecem-na, disse Jesus, “segundo a carne” (a aparência captada de modo sensível e imediato). Ou seja, eles conheciam a “verdade” no sentido de “realidade”, conforme Foucault. Isto é, eles conhecias a verdade que é deste mundo, e que é produzida nele graças a múltiplas coerções e nele produz efeitos regulamentados de poder e de realidade. Em outros termos, eles conheciam a “realidade”, apenas no sentido de “mundo da pseudoconcreticidade” (Kosik), “mundo ou sítio das trevas exteriores” (Jesus) ou “mundo da vida” (Schutz). Pois, é estrito e caótico o modo como o indivíduo se vê enquanto um todo, em razão do respectivo caminho estrito que este indivíduo percorre. Caminho estrito este que lhe possibilita compreender esse todo de forma sensível e imediata, na representação, na opinião e na experiência. Ou seja, o todo é imediatamente acessível ao indivíduo, mas consiste num todo caótico e obscuro. Enfim, o Mestre se dirigiu aos sacerdotes, afirmando que julgava conhecer a realidade, conforme a “verdade”, isto é, de modo mais amplo e profundo. Pois, ele sabia que houvera percorrido o caminho, “détour” ou método analítico, o qual lhe possibilitara conhecer essa ampla e profunda dimensão da verdade acerca da realidade. Conhecimento verdadeiro este ou reino do Deus Pai, que o Mestre evocou o testemunho em seu favor. Vamos ao trecho em tela:
“Vós julgais segundo a aparência; eu não julgo a ninguém. E se julgo, o meu julgamento é conforme a verdade, porque não estou sozinho, mas comigo está o Pai que me enviou (o grifo em negrito é nosso)”. (Jo 8, 16).
[1] . Foucault M. – Microfísica do Poder, p. 13-14.